Chega o Carnaval e, com ele, aquela sensação de que garrafa cheia ninguém quer ver sobrar, que é tempo de beber até se afogar. Mas saiba de uma coisa, folião: isso não é exatamente uma novidade.
Homens e mulheres recorrem aos “gorós” muito antes de o Carnaval ter sido inventado. É mais: o álcool existe no mundo antes mesmo do surgimento do ser humano.
Engenheiros afirmam que a substância ocorre sozinha na natureza sob certas condições; e pesquisadores estimam que o consumo humano tenha surgido na Ásia. Mas, há uma história por trás de cada gole, porém, antes, um aviso: o álcool é responsável por 3 milhões de mortes por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde. Como diz a marchinha, cachaça não é água — mas é cultura. Entenda:
A análise é do engenheiro químico Luiz Gustavo Lacerda, professor e pesquisador de alimentos na Universidade Estadual de Ponta Grossa. “Cereais, mel, frutas e outras fontes açucaradas precisam de uma condição, muitas vezes a presença de água, para que microrganismos espontaneamente produzam etanol, além de diversos outros componentes”, afirma.
Dessa maneira, a chuva que cai sobre um favo de mel pode fazer com que leveduras (fungos) produzam o que hoje chamamos de hidromel — uma bebida alcoólica. Mas foi preciso haver humanidade para que os prazeres do copo fossem conscientemente explorados – antes dos goles, é claro.
O antropólogo Patrick E. McGovern, que pesquisa bebidas fermentadas no Museu da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia, Estados Unidos, diz que a produção de álcool para consumo surgiu na China. – “Era uma bebida fermentada feita de uvas selvagens, espinheiro, arroz e mel.” Tal descoberta arqueológica só foi possível graças a uma invenção chinesa de cerca de 15 mil anos atrás.
A cerâmica
“Ela é praticamente indestrutível, e os líquidos são absorvidos pelos seus poros”, explica McGovern. “Assim, produtos orgânicos antigos são preservados por milhares de anos até que conseguimos extraí-los e analisá-los.” Não se sabe exatamente como era essa bebida. Mas McGovern usou os indícios químicos e tentou reproduzir a receita em seu laboratório — chegou a algo no meio termo entre uma cerveja e um vinho.
Da água para o vinho
“Séculos após os indícios de fermentações encontrados na civilização chinesa, deu-se origem às bebidas com mais características que conhecemos atualmente: a cerveja e o vinho”, pontua Lacerda. Ele afirma que o vinho deve ter surgido por volta do ano 5.000 antes de Cristo.
“Sua origem mais provável ocorreu no Oriente Médio, região que atualmente abriga Síria, Líbano e Jordânia. Além disso, registros mostram que a cerveja surgiu na região da Mesopotâmia habitada pelos sumérios há aproximadamente 6.000 anos e de forma acidental. Talvez tenha surgido por uma panificação mal — ou bem — sucedida”.
Na região onde hoje é o Iraque, entre os rios Tigre e Eufrates, os sumérios tinham 19 tipos de bebidas alcoólicas. Apenas três delas não eram à base de cevada e trigo. De gole em gole, a bebida passou a ser instrumento de coesão social. “No Egito antigo, havia uma cota diária aos trabalhadores que recebiam o ‘pão líquido’ como pagamento. E pena de morte era prevista para quem adulterasse a indicação de produção da bebida”.
Há registros de que os trabalhadores que ergueram a pirâmide de Gizé ganhavam, cada um, cinco litros de cerveja por dia. O poderoso faraó Tutancamon, que viveu por volta de 1300 antes de Cristo, foi sepultado com 26 jarras de vinhos, de 15 tipos diferentes.
Pindorama
A bebida alcoólica também estava presente entre os habitantes do que hoje chamamos de Brasil antes de os portugueses chegarem. Dentre as opções do cardápio tupiniquim, o pileque mais ilustre era o cauim, conforme relata o jornalista e publicitário Ulisses Tavares em seu livro Hic’stórias: Os Maiores Porres da História da Humanidade.
“Em nossas selvas quentes e úmidas, as opções eram variadas. E a mandioca crescia como mato, era só arrancar e preparar o cauim. Existiam outras bebidas alcoólicas, preparadas com milho, babaçu etc., mas o cauim imperava entre os indígenas de norte a sul”, relata ele. E traz a receita: “Pegue uma porção de mandioca, descasque, cozinhe bem, rale tudo. Ponha a gororoba na água fria e deixe fermentar por três dias. Se ficar muito forte, misture com caldo de cana. E está pronto”, ensina o livro.
“Assim como outros povos indígenas, os tupinambás possuíam um sólido conhecimento das artes da fermentação e utilizavam este conhecimento em uma pletora de bebidas fermentadas chamadas genericamente de cauim, em especial as cervejas de mandioca e milho e os vinhos de frutas, dos quais o mais apreciado era o de caju”, narra o historiador João Azevedo Fernandes (1963-2015) no artigo Sobriedade e Embriaguez: A Luta dos Soldados de Cristo Contra as Festas dos Tupinambás.
Com a chegada dos portugueses, o leque etílico nacional se alterou.
“No Brasil do século 16, os portugueses intensificaram o plantio da cana-de-açúcar e como um subproduto da produção realizada pelos engenhos de açúcar, a cachaça começou a ser fabricada como uma alternativa ao vinho e é considerada um dos primeiros produtos nacionais. No entanto, engana-se quem acredita que por aqui a história das bebidas começou assim”, diz o engenheiro químico Lacerda.
A ciência do pileque
Mas se os “gorós” fazem parte da humanidade pelo menos há cerca de 10 mil anos, na maior parte desse tempo tudo era feito sem que se compreendesse o processo. A ciência por trás de cada gole é devida a um gênio da química, o francês Louis Pasteur (1822-1895).
“Foi somente em 1857 que ele conseguiu provar que o processo fermentativo com geração de álcool era realizado por leveduras”, conta Lacerda. “Pasteur também observou que outros microrganismos, as bactérias, acabavam por azedar as bebidas e, para solucionar esse problema, criou o método conhecido como pasteurização”.
Todo esse percurso foi fundamental para que a bebida se tornasse uma mercadoria tal e qual como conhecemos hoje. Em meio a um universo tão vasto, com potencialidades infinitas, Lacerda tem uma certeza: bebida é parte da história e da cultura humanas. “Podemos dizer sem medo que as bebidas alcoólicas não só acompanharam a humanidade: certamente a mudaram”, afirma.
Patrick E. McGovern, diretor científico do Projeto de Arqueologia Biomolecular para Culinária, Bebidas Fermentadas e Saúde e Edição: Bruno Aragaki Reportagem: Edison Veiga/ JC
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