João Pedro Gomes da Silva, de 20 anos, passou em todas as etapas do concurso de 2017, inclusive no exame médico. Mas, enquanto esperava a confirmação sobre a posse, recebeu a informação de que os examinadores tinham voltado atrás na avaliação – decidiram desqualificá-lo por ter um lobo tatuado no antebraço.
Na última terça, uma revista juridica revelou que concursos públicos para a Marinha, bombeiros e polícias militares de mais de dez Estados continuam a barrar candidatos por terem tatuagem, contrariando decisão de 2016 do Supremo Tribunal Federal (STF).
Segundo o STF, tatuagens não podem ser motivo para vetos em concursos, a não ser que contenham mensagens que violem valores constitucionais ou incitem à violência. E a decisão teve reconhecida a sua “repercussão geral”, ou seja, deve valer para todos os processos semelhantes em tramitação no país.
Silva recorreu da decisão no dia 3 de novembro, justamente citando a decisão do Supremo. O juiz João Carlos Mayer Soares, da 17ª Vara da Justiça Federal do DF, acolheu o argumento de que é discriminatório desqualificar um candidato só por ter tatuagem.
“Hoje em dia muita gente tem tatuagem. Esse não pode ser um critério de admissão, principalmente quando se trata de concurso público, quando o que está em jogo é meritocracia. Uma pessoa que passou em todas as provas não poderia ser vetada só por ter tatuagem”, disse a advogada Daniela Tamanini, autora da ação contra a desclassificação de Silva.
O que dizia o edital da Marinha?
O último edital para o curso de fuzileiros navais, publicado em fevereiro deste ano, vetava qualquer tatuagem que não ficasse oculta sob o uniforme de treinamento. Dois candidatos foram barrados por possuírem tatuagens visíveis, um deles era João Pedro Gomes da Silva. Questionada no início da semana se a decisão não estaria em desacordo com a posição do Supremo, a Marinha argumentou que tatuagens aparentes violam “os princípios constitucionais da hierarquia e disciplina” e que estes princípios são a “base institucional das Forças Armadas”. O Exército e a Aeronáutica disseram que só vetam tatuagens ofensivas ou com mensagens que violem a legislação.
Polícias militares
Ter tatuagem também continua sendo fator impeditivo para integrar as polícias militares de diversos Estados, apesar da decisão do STF. Editais de 2016 e 2017 de cinco Estados – Acre, Goiás, Paraná, Amapá e Pará – fazem restrições a tatuagens visíveis. Edital de 2 de março deste ano para soldado da PM do Acre, por exemplo, classifica como “condição incapacitante” a existência de “tatuagens em extensas áreas do corpo de forma que fiquem expostas ao público quando do uso de uniformes militares de qualquer modalidade”.
Em edital de julho de 2017, a PM do Amapá impede a admissão de candidatos que apresentem, “quando em uso dos diversos uniformes, tatuagem visível que, por seu significado, seja incompatível com o exercício da atividade militar”.
Para a PM do Paraná, em edital de 2017, a existência de tatuagem contraria a “estética militar”: “Será considerado inapto o candidato portador de tatuagem em áreas visíveis, que não esteja protegida pelo uniforme de treinamento físico (composto por camiseta meia manga, calção, meias curtas e calçado esportivo) e seja contrária à estética militar.”
‘Moral’ e ‘bons costumes’
Outra restrição aparentemente comum nos editais lançados após a decisão do STF é a tatuagens que contrariem “a moral e os bons costumes”, ou que “remetam a atos libidinosos”.
A vedação aparece nos concursos para as polícias militares de seis Estados – Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Piauí, Maranhão e Ceará. O edital de dezembro de 2016 para soldado da PM do RJ, por exemplo, tenta evitar tatuagens “atentatórias à moral e aos bons costumes”.
Para o advogado Vicente de Paulo Massaro, autor da ação que resultou na decisão do STF de impedir vetos a tatuagens, restrições baseadas em “decoro” e moral abrem caminho para decisões subjetivas nos processos seletivos de candidatos. “No concurso público, não pode haver cláusula de caráter subjetivo, que dependa da pessoa que está avaliando. Alguém pode avaliar a tatuagem de uma flor e interpretar que se parece com o órgão sexual feminino. O resultado do concurso não pode depender da opinião ou forma de interpretar de uma pessoa”, avalia.
No julgamento do STF sobre tatuagens, o Ministério Público Federal defendeu que “moral e bons costumes” não podem ser usados para barrar candidatos. “O fato de um candidato possuir, na pele, marca ou sinal gravado mediante processo de pigmentação definitivo não inviabiliza nem dificulta minimamente o desempenho de qualquer tipo de função, pública ou privada, manual ou intelectual, de modo a incidir, na hipótese, a vedação expressa no artigo 3º da Constituição Federal”, disse a Procuradoria-Geral da República.
“Pensar contrariamente seria o mesmo que admitir que uma mancha ou sinal geneticamente adquirido poderia impedir alguém de seguir a carreira militar. O que poderia ocorrer, em tese, seria a inadequação do candidato cuja tatuagem implicasse ofensa à lei e não aos ‘bons costumes’ ou à moral.”
Bombeiros
Editais de concursos para bombeiros também desafiam a decisão do STF, conforme o levantamento da BBC Brasil. Os editais para bombeiros do Paraná e da Paraíba proíbem tatuagens que contrariem a “estética” militar, sem definir quais seriam esses padrões. O último concurso para bombeiro do Distrito Federal vedou tatuagens no rosto ou as que, de alguma forma, violem o “padrão de apresentação militar”.
De forma genérica, o edital dos bombeiros de Pernambuco menciona como fator de exclusão do concurso tatuagens que possam “comprometer ou prejudicar” o exercício da atividade de bombeiro. O concurso deste ano do Piauí para o Corpo de Bombeiros veta qualquer tipo de tatuagem aparente.
Já no Rio Grande do Sul e no Rio Grande do Norte, além das restrições a tatuagens ofensivas, também são vetadas, em editais lançados em 2017, imagens que “atentem contra a moral” ou “aludam a ato libidinoso”.
O que pode fazer quem vai barrado por ter tatuagem?
Assim como fez o candidato a fuzileiro naval vetado por ter tatuagem, outros candidatos que se sentirem prejudicados podem entrar com ações na Justiça. Além disso, os editais que contradizem a decisão do STF podem vir a ser questionados pelo Ministério Público dos Estados onde o concurso ocorreu ou ocorrerá.
“Eu vejo que estão desafiando uma decisão da mais alta corte do país, que é o Supremo. Aquela decisão tem abrangência nacional. Eles não podem desrespeitar por motivo algum. Qualquer candidato que for barrado pode questionar isso, ele tem uma decisão que não pode voltar a ser julgada de forma diferente”, afirma Massaro.
É o que aconteceu recentemente no concurso para a Polícia Militar de São Paulo. Edital de novembro de 2016 vedava tatuagem que fosse “visível na hipótese do uso de uniforme que comporte camisa de manga curta e bermuda”.
O Ministério Público do Estado de São Paulo entrou, então, com uma ação na 10ª Vara de Fazenda Pública de SP questionando este trecho do edital. Com base na decisão do STF, a juíza Sabrina Martino Soares determinou que fosse anulada a cláusula do concurso que restringia tatuagens visíveis.
Existem restrições nesta área no resto do mundo?
As regras sobre tatuagens em serviços policiais ou nas Forças Armadas variam em cada país.
A Marinha britânica, uma das mais tradicionais do mundo, flexibilizou, no ano passado, a regra para o recrutamento de candidatos tatuados: passou a permitir imagens gravadas atrás das orelhas, nos braços e até no pescoço.
O objetivo foi garantir a adesão de jovens ao corpo de fuzileiros. Pelas novas regras, são permitidas múltiplas tatuagens, inclusive de tamanho grande, nos antebraços, pulsos, joelhos e mãos, autorizando, assim, tatuagens visíveis nos uniformes de treinamento.
Desde março de 2016, a Marinha dos Estados Unidos também permite tatuagens visíveis. Os marinheiros podem ter uma tatuagem no pescoço e quantas quiserem nas pernas e braços. Só são vetadas imagens “racistas, sexistas, extremistas, indecentes, preconceituosas ou que atentem contra a instituição”. Já as Forças Armadas de Portugal e Alemanha impõem restrições a tatuagens visíveis e não são permitidas.
Nossa Opinião
Se antes era visto como um motivo de segregação, hoje as tatuagens são reconhecidas como manifestação do pensamento e de expressão, direitos fundamentais previstos na Constituição da República Brasileira, art. 5º, IV e IX.
Apesar de algumas pessoas ainda terem certo receio quanto ao contato com indivíduos tatuados, eles estão por aí em todos os locais. Tanto é verdade que dificilmente qualquer um de nós conseguirá pensar em um grupo que não tenha pelo menos uma pessoa tatuada. Estamos vivendo agora o tempo das tatuagens. Familiares, amigos da faculdade e do serviço… Em todos os lugares que frequentamos, fazemos contato diário com alguém tatuado. E na Polícia Militar não é diferente, são vários praças e oficiais tatuados.
Em agosto de 2016, os ministros analisaram o recurso de um candidato a concurso de soldado da PMESP que foi reprovado por ter uma tatuagem na panturrilha. E o resultado foi muito comemorado por todos os jovens tatuados que sonham ingressar na Polícia Militar. Por maioria de votos, a Suprema Corte proferiu a seguinte tese de Repercussão Geral: “Editais de concurso público não podem estabelecer restrição a pessoas com tatuagem, salvo situações excepcionais em razão de conteúdo que viole valores constitucionais.”
Claro que a decisão do STF não escancarou as portas da PM para qualquer pessoa tatuada, tanto que o acesso de candidatos com tatuagens visíveis continua restrito em muitas corporações militares, como é o caso da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Em Minas Gerais
Por outro lado, no site da Polícia Militar de Minas Gerais, há uma nota técnica informando que a decisão do STF demonstra total consonância com a legislação mineira e as práticas adotadas pelo Centro de Recrutamento e Seleção na execução dos concursos públicos. Para melhor entendimento dos candidatos, cita o trecho da Lei 5301/69, que contém o Estatuto dos Militares do Estado de Minas Gerais – EMEMG:
Art. 5º – O ingresso nas instituições militares estaduais dar-se-á por meio de concurso público, de provas ou de provas e títulos, no posto ou graduação inicial dos quadros previstos no § 1º do art. 13 desta Lei, observados os seguintes requisitos:
[…] X – não apresentar, quando em uso dos diversos uniformes, tatuagem visível que seja, por seu significado, incompatível com o exercício das atividades de policial militar ou de bombeiro militar.
Deve-se destacar tal conduta da PMMG, que, em 2015, já tratava os candidatos tatuados com o mesmo entendimento que os ministros do STF afirmaram somente em agosto de 2016. Para as demais corporações militares, fica o exemplo de Minas Gerais.
Analisando a questão por outro viés, se antes o critério era objetivo (tem tatuagem, está reprovado), atualmente, tornou-se uma análise subjetiva, pois depende de interpretação do significado das tatuagens. Na internet pode ser encontrado inúmeros casos e é ai que surge a polêmica numa era em que as tatuagens cada dia mais parecem dominar os jovens e adultos de mundo inteiro.
E aí surgirá outros grandes problemas: algumas imagens são absolutamente ofensivas, como as inscrições CV ou 1533, alusivas a organizações criminosas, mas outras imagens podem ser ofensivas na opinião de uma pessoa e não-ofensivas na opinião de outra. Porém, existem algumas outras de significado nem tão conhecido pela maioria da população. É o caso da carpa, que é muito utilizada por traficantes e integrantes do PCC.
Concordamos plenamente que temos que proteger nossas instituições, mas as leis mudam conforme mudam os costumes da sociedade e devemos nos adaptar às mudanças. A Polícia Militar faz parte da sociedade e, como tal, precisa acompanhar a constante evolução.
Há alguns anos, era um absurdo uma mulher querer ser policial militar. E hoje elas estão aí como verdadeiras guerreiras de farda, inclusive muitas delas nas funções de comando.
Outra mudança que podemos destacar é a extinção do RDPM. Em outros Estados, ainda existem os Regulamentos Disciplinares com previsão de controle da tropa pela imposição da prisão disciplinar.
Atualmente, em Minas Gerais, não existe mais a previsão de prisão disciplinar e tal mudança não trouxe falta de controle da tropa, como alguns pessimistas previram. Muito pelo contrário, a PMMG é considerada uma das melhores do Brasil.
O ministro do STF Luiz Fux afirmou que “Um policial não é melhor ou pior nos seus afazeres públicos por ser tatuado”.
Cada pessoa, militar ou civil, tem sua opinião sobre o acesso de candidatos tatuados a função de policiais. Particularmente, somos totalmente a favor da quebra desta barreira, com ressalva à coerência entre a tatuagem e a atividade policial. Acreditamos que não é uma tatuagem que define o caráter da pessoa, muito menos seu profissionalismo.
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Fonte: Revista Consultor Jurídico publicação do dia 16/11/17
Trechos de Fabrício Firmino Sargento da PMMG e estudante de Direito
Redação do JC
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