O médium João de Deus – João Teixeira de Faria foi condenado nesta quinta-feira 19 de dezembro a 19 anos e quatro meses de prisão por quatro crimes sexuais cometidos contra mulheres durante atendimentos espirituais em Abadiânia/Goiás.
A decisão foi da juíza Rosângela Rodrigues, da comarca de Abadiânia. É a primeira por crimes sexuais – o caso está sob segredo da Justiça. O médium responde a mais de dez denúncias, entre elas porte ilegal de armas de fogo.
A pacata Avenida Frontal onde João de Deus trabalhava ficava o ano inteiro lotada. Nas ruas próximas ao portão de entrada da Casa Dom Inácio de Loyola, carros e ônibus de excursão dividiam espaço com pessoas que iam ou voltavam a pé das mais de 70 pousadas que recebiam turistas do mundo inteiro. Todas tinham listas de espera e algumas, reservas marcadas para quatro anos depois.
Era assim até dezembro de 2018, quando um “tsunami” deixou às moscas quase toda a pequena Abadiânia, cidade na região leste de Goiás com cerca de 20 mil habitantes e que vivia em torno da devoção e das curas do médium João de Deus, preso há exatamente um ano.
O estabelecimento recebia 2 mil pessoas por semana. Atualmente, são 100 pessoas no máximo por mês. A casa segue funcionando, mas ninguém fala com a imprensa. Também não há informações de que algum outro médium substituiu o titular, preso no Complexo Prisional Aparecida de Goiânia.
Das 13 denúncias apresentadas pelo MP, duas referem-se a porte ilegal de armas, encontradas em suas residências, e 11 a abusos de mulheres que frequentaram a casa espírita Dom Inácio de 1973 a 2018 quando foi preso. Os advogados de defesa de João Teixeira de Faria (seu nome original) foram procurados para dar entrevista diversas vezes, mas não retornaram as ligações.
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A morosidade da Justiça alimentava interpretações favoráveis ao médium na cidade. “Você não acha estranho que ele nunca tenha sido condenado? Falam que fez horrores, não para de aparecer história e, mesmo assim, não tem uma única punição!”, disse um ex-taxista, hoje “fazedor de bico” de Abadiânia, que não quis ter seu nome revelado para não “desagradar ao João de Deus e ao povo da casa que ele mantinha”.
“João de Deus colocou comida na mesa de muita gente aqui em Abadiânia, queria frisar isso”, exclama o dono de uma das inúmeras pousadas fechadas este ano na cidade. “Ele andava pela cidade e tratava todo mundo bem, com respeito e educação ninguém pode falar um A contra ele”, acrescenta.
Apesar de ter passado janeiro no vermelho e se ver obrigado, “por uma questão de consciência”, a devolver cerca de R$ 30 mil em dinheiro a turistas que haviam antecipado 10% do valor das reservas de 2019, o empresário goiano acredita que os jornalistas deveriam dar espaço também às benfeitorias feitas pela casa religiosa. Lá, diz ele, a população era bem recebida e tratada com respeito pelos funcionários. “Principalmente por João de Deus, um homem que olhava você no olho e só tinhas palavras boas.”
Outra dona de hospedagem que atingiu lotação máxima de 2006 a 2018 relatou ao R7 que tem usado o dinheiro acumulado nos anos de fartura para tocar uma loja em Anápolis, município vizinho. “Gente demais foi trabalhar longe daqui, é o jeito. De repente tudo desmoronou nas nossas vidas.”
Um estudo da Prefeitura de Abadiânia divulgado em julho, desenvolvido por empresas como o Sebrae/Goiás e Universidade Salgado de Oliveira, mostrou que 39% das famílias do município foram afetadas com os acontecimentos. O setor de hospedagem teve uma redução de 85% no faturamento, as empresas da área de alimentação encolheram 53% e o artesanato passou a ganhar 83% menos. O comércio está enfraquecido e a cidade aos poucos está sendo esquecida e abandonada por todos.
Denúncias
As 11 denúncias incluem o relato de 57 mulheres que detalharam abusos ocorridos a partir de 2008. Antes disso, os possíveis crimes já prescreveram e não serão sequer investigados. São 319 vítimas que entraram em contato com o MP, algumas via email, e que precisam formalizar a acusação para ela se tornar válida.
E o relatos continuam chegando. “A força-tarefa não fechou o canal de comunicação com essas mulheres. Estamos num processo de finalização das ações penais, mas ainda recebemos as denúncias”, esclarece.
O Distrito Federal e o estado de São Paulo, com 59 casos cada, são os locais com o maior número de vítimas. Em terceiro lugar aparece Goiás, com 37. As 319 vítimas são ex-frequentadoras da casa em Abadiânia, surpreendidas com toques inapropriados ou obrigadas a fazer sexo. Quinze delas tinham menos de 13 anos de idade.
“Há relatos em outros estados e até no exterior, mas isso não compete ao MP-GO apurar”, afirma a promotora. A reportagem não encontrou qualquer outra investigação contra o médium. Nem mesmo no Rio Grande do Sul, onde João de Deus mantém a casa Dom Inácio de Loyola Sul, no município de Canelas.
“Há, sim, 18 casos de gaúchas que relataram abusos sexuais de João de Deus, mas ocorridos em Abadiânia, não aqui. Não há o registro de um único caso ocorrido no estado que tenha chegado ao conhecimento do Ministério Público do Rio Grande do Sul”, disse a assessoria de imprensa do órgão.
Gabriella, do MP-GO, cita que além dos crimes sexuais, outras denúncias apareceram nesse um ano de prisão. “Algumas ativistas de grupos feministas divulgaram que ele seria responsável pelo tráfico internacional de crianças, mas como esse é um crime de competência federal, foi encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF).”
Em 1980, a morte de um taxista local chegou a ser investigada por contar com a possível participação de João de Deus, mas ele foi absolvido. O assassinato de uma turista alemã em 2006, em Abadiânia, logo após supostas denúncias feitas por ela contra o médium, também não avançou.
“Fazemos um trabalho técnico, jurídico e responsável”, diz a promotora. “Não cabe a mim dizer se ele era ou não bom no seu trabalho espiritual. Muitas vítimas relatam que foram curadas de fato pelo réu João Teixeira de Faria, o que não o autorizaria a passar de qualquer limite por causa disso.”
Gabriella observa que a discussão deveria ser mais sobre machismo do que sobre religião. “Está em jogo nessa história uma série de crimes e também a forma como as mulheres são tratadas, essa tendência a usar o sexo feminino como um bem, como algo que possa ser explorado por pessoas que detêm o poder.”
Abadiânia precisa continuar
O prefeito da cidade de Abadiânia, José Diniz (PSD), diz que 20% da receita do município vinha do turismo ligado à casa Dom Inácio de Loyola. “Tínhamos uma estrutura toda montada para atendimento ao público que visitava o local e isso praticamente desapareceu”, admite.
Foram afetados hotéis, restaurantes, lanchonetes, bares, lojas e centenas de moradores que trabalhavam no transporte, hospedagem e na recepção dos turistas. “Várias das pessoas que procuravam a casa eram doentes que precisavam de serviços próximos. Por isso a área em volta daquela estrutura foi a mais afetada.”
Mil pessoas, segundo o prefeito, ficaram desempregadas após o escândalo. “Já conseguimos reempregar umas 300, com o estímulo ao turismo de nosso lago, o Corumbá, uma opção de visita bastante procurada por pescadores e por quem gosta de natureza. “É um local excepcional para pegar o tucunaré”, vende o peixe, literalmente.
“Eu tenho fé em Deus que Abadiânia vai sair por cima disso tudo. Nunca podemos ficar totalmente dependentes do João de Deus e não é agora que com ele condenado vamos ficar”, complementa José Diniz. “Minha gestão está 100% voltada para isso, não podemos chorar o leite derramado”.
O político conta que a população ficou chocada com os acontecimentos, foi trágico e está sendo difícil recomeçar, mas não há vítimas na cidade. “A casa recebia gente de fora, de São Paulo, do exterior. O povo daqui não era atendido. Dos 20 mil habitantes, se 10 pessoas costumavam ir lá era muito.”
Com o médium João de Deus condenado a 19 anos e quatro meses de prisão termina por vez os atendimentos espirituais em Abadiânia, em Goiás. Se alguém ainda tinha alguma esperança ela terminou. Mesmo que ele fosse libertado, a cidade não voltaria ser a mesma, define o prefeito Diniz. A decisão da juíza Rosângela Rodrigues, da comarca de Abadiânia, é irrevertido, sendo a primeira por crimes sexuais – o caso está sob segredo da Justiça. O médium responde ainda a mais de dez denúncias, entre elas porte ilegal de arma de fogo. Acabou, essa é a realidade que a cidade vai ter que entender e procurar doravante conviver. Sem João de Deus resta apenas a certeza de que o tempo de vacas gordas terminaram.
Direto da Redação com informações do Diário do Povo e Jornal Estado de São Paulo
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