Quatro dias depois ainda repercute a vergonha do último jogo oficial do ano entre Flamengo X Independiente, um cenário preocupante, porém banal na atualidade: discurso de ódio, brigas, confusões, polícia utilizando das mais diversas armas ditas “não letais” para combater o caos e o futebol como coadjuvante. E os tumultos, desta vez, começaram bem antes do jogo. Com um dia de antecedência.
Na noite de véspera do duelo final da Sul-Americana, torcedores do Flamengo cumpriram uma promessa de retaliação e tacaram bombas na direção do hotel que servia de concentração para o Independiente. O tradicional foguetório era pouco na decisão de “dar o troco” pelas dificuldades encaradas pelo Rubro-negro em Buenos Aires. Eles queriam mais. Grades foram arremessadas e uma tentativa de invasão foi verificada. No fim, dezenas de detidos pela polícia. O sinal estava claro: a quarta-feira não seria tranquila. Promessa cumprida. Horas antes dos portões abrirem, mais tumulto. Agora na porta do Maracanã. Rubro-negros atacavam torcedores do Independiente que se deslocavam para a entrada dos “hinchas”.
A tropa de choque da Polícia Militar entrou em ação. Agora com cavalos. Novidades no dia, mas algo já corriqueiro nas portas de estádios do Rio de Janeiro. Bombas de gás lacrimogênio, gás de pimenta e balas de borracha se juntavam ao arsenal que tentava conter os tumultos. Nada novo na cidade, acostumada a confrontos no Engenhão e em São Januário. A Polícia Militar tentou até onde deu. Os torcedores não desistiam. E passaram a invadir o Maracanã derrubando grades, leitores eletrônicos e o que viam pela frente, crianças, adultos e mulheres indefesas. E fez-se uma nova briga generalizada, agora no portão B, conforme relatado pelo do mundo todo, uma vergonha.
Uma guerra de torcedores
Os nossos torcedores se juntavam para invadir a força brutal. Então começou a guerra com a polícia. Aquilo que já sabemos de sempre: gás de pimenta, gás lacrimogênio e bala de borracha. As pessoas se abaixavam, pulavam pela rampa. Um horror, uma guerra”, contou um assustado Guilherme de Souza, 23 anos, entre tantos outros. Bola rolando. Uma pequena paz. Mas que não durou mais de 90 minutos. Fim de jogo, Flamengo vice-campeão e novo tumulto. Bombas e morteiros foram atirados em caminhões de transmissão das emissoras de televisão e na entrada da imprensa. Pedaços de madeira, garrafas e pedras no portão de saída dos jogadores. A PM agiu com bombas de efeito moral, jatos de água, balas de borracha e spray de pimenta. Sim, tudo de novo. Centenas de torcedores demoraram quase uma hora para deixar o estádio.
Neste último duelo no Rio em 2017, o pacote completo. Racismo por parte dos argentinos, brigas e confusões entre os rubro-negros antes, durante e depois da partida. E mais uma página manchada do futebol carioca. No fim, os times empataram por 1 a 1. Mas pouco se falou disso na saída de um Maracanã em guerra e uma triste realidade que terá que ser punida com toda certeza, esperam os brasileiros e os convidados da Argentina que compareceram em massa para prestigiarem o que deveria ter sido mais um clássico decisivo do futebol que todos apreciam. Veja alguns depoimentos que ficaram marcados na história de futebol brasileiro e de um time considerado o maior do país.
Os depoimentos e a tragédia
“E só um jogo”. A estratégica frase usada por pais para amenizar o sofrimento dos filhos em derrotas futebolísticas teve o tom alterado na triste noite de quarta-feira, no Maracanã. Deixou de ser resposta automática para virar pergunta de uma criança de 7 anos: “Pai, mas você não falou que é só um jogo?”. O questionamento escancara novas derrotas. Essas mais duras: do estado, do futebol e até do encantamento dos pequenos pelo esporte mais popular do planeta.
O GloboEsporte.com reuniu depoimento de três crianças, todos autorizados pelos pais, e de dois adultos que ficaram assustados e traumatizados com a barbárie ocorrida antes, durante e depois a conquista do Independiente sobre o Flamengo na final da Sul-Americana, no Maracanã.
José de Hollanda, 7 anos (com auxílio e detalhes narrados pelo pai)
A passarela que leva à estação de metrô do Maracanã era um mar de gente e virou um barril de pólvora. A confusão que acontecia na Radial Oeste, onde um homem que atropelou um torcedor tinha o carro depredado e saqueado, teve reflexos na passarela, que fica acima de onde começou a confusão.
Foi muito gás de pimenta e bombas de efeito moral. Policiais e seguranças do metrô fecharam a estação e o tumulto aumentou, pois era corre-corre das pessoas que estavam na passarela e tantas outras que subiam as escadas de acesso à estação para se proteger do caos na Radial Oeste. Muitas pessoas tiveram celulares furtados.
A sorte foi que José, com o pai e madrasta, conseguiram entrar na estação após o pai peitar um policial que parecia não se comover com os gritos de “estou com criança, estou com criança”. A pimenta invadiu com força a estação, onde muitas crianças eram amparadas por adultos em meio às lágrimas e tentando amenizar a ardência na frente dos ventiladores da estação.
Sentado no chão, chorando, sem entender que ardência era aquela que o impedia de abrir os olhos, José falou: -Arde meus olhos, e ao redor da minha boca. Me ajuda, me ajuda. Meu Deus, não me deixe morrer. Mais calmo e já dentro do metrô, José fez a pergunta difícil de responder: -Pai, mas você não falou que é só um jogo?
Bernardo Faria, 11 anos
“Fiquei muito nervoso de acontecer alguma coisa comigo e muito nervoso com as coisas. Foi muita bomba, gás de pimenta. Já tinha acontecido na final da Copa do Brasil, contra o Cruzeiro, mas não tanto. Fiquei muito apavorado. Eu só voltaria agora em jogos do Carioca ou do Brasileiro, decisão não gostaria. Esses jogos decisivos, finais e em copas internacionais sempre tem essas coisas.
Estávamos na fila, e um cara lá atrás jogou uma garrafa de vidro perto do policial. Ele achou que meu tio tinha jogado e apontou arma para nós e disse que ia atirar. Foi muito chato, agora em jogo decisivo vou pensar duas vezes antes de ir”.
Pedro Migon, 12 anos
“A gente estava na Radial Oeste, aí, chegando perto do Portão F, comecei a sentir um cheiro muito forte de spray de pimenta na minha cara. Ardia muito meu olho, começaram a dar tiro de bala de borracha. Atravessamos a rua, e eu vi um cara atingido por essas balas nas pernas. Tinha um monte de gente com o rosto ardendo. Aí de repente olho para o Portão E, e um monte de gente está invadindo com sinalizadores. Me assustou muito. E vai acontecer de novo. Se esses torcedores não forem presos, vai acontecer com certeza”.
Marcelo Câmara, 41 anos e que saiu do Recife para ver o jogo
“Estou morando há três anos no Recife e, nesse período, aproveito quando vou ao Rio para fazer o que eu amo: acompanhar o Flamengo. Comprei para o Setor Norte e fui sozinho. Meus amigos não conseguiram ingressos para o mesmo setor, mas conheço o Maracanã.
Tenho mais de 30 anos de estádio, já passei por muito perrengue para entrar, mas nada se compara ao que vivi ontem. Entrei uma hora e meia antes do jogo, quando passei pela entrada E já estava uma correria danada. Quando cheguei na F, o cenário que vi foi de Guerra Civil. Não há como descrever de outra forma.
A torcida quebrando tudo, jogando grades no meio da Radial Oeste, e os pouquíssimos policiais completamente perdidos. Batiam em quem passava pela frente. Mulheres, crianças, poxa. Quando cheguei ao meu acesso, procurei um policial para falar das entradas e, quando fui falar com ele, olhei e vi que vinham dois caveirões. Me lembrou o Tropa de Elite. Jato d’água para cima do povo, gás lacrimogêneo, bala de borracha… Era criança chorando, gente passando mal. Eu passei mal.
Uma final de campeonato, saio de Recife, deixo minha família aqui. Estava confiante, empolgado, mas sinceramente minha vontade era pegar um táxi para o aeroporto, abraçar meus filhos e minha família porque vi uma coisa muito pior acontecendo”. – Você perde o tesão de ver o jogo. Obviamente fiquei até o final, mas não vi todo o jogo até o final, porque existia um pavor.
Juliana Pinho, 24 anos
“Vi basicamente todas as invasões da (entrada) E. Vi a cavalaria chegando depois da terceira invasão. Foi muito triste, era muita gente entrando pelo Bellini, pulando muro. Os indícios de confusão se deram quando subiu o famoso cheiro de gás de pimenta. A polícia estava totalmente despreparada. Eles deviam conduzir os seguranças (privados) da Sunset, mas estavam perdidos. Jogavam bomba para dispersar a multidão, mas tacavam num local que fazia o povo invadir. Forçava a invasão. Jogavam bombas com pessoas no chão. O primeiro que estava na frente perto das grades, ainda fora do estádio, era empurrado. A grade caía, e essas pessoas ficavam com o pé preso embaixo da grade. Vi muita gente saindo de maca. Muito triste”. – Vi gente sendo pisoteada, escorada na parede. De tudo quanto é jeito. Lamentável.
O jogo para piorar as coisas
O torcedor que viu o time que o Flamengo estava montando no começo do ano não esperava nada menos que títulos e alguns bagunça. Agora, porém, ele se despede de 2017 cheio de frustrações e bastante irritado com a equipe que viu em campo e fora de campo.
Nesta quarta-feira, 13, veio o golpe final nos ânimos rubro-negros. Com a chance de ‘salvar o ano’ nas mãos, o Flamengo até jogou bem, mas não conseguiu sair de um empate por 1 a 1 com o Independiente e acabou perdendo também o título da Sul-Americana. O resultado foi imediato nas arquibancadas, a torcida deu adeus aos jogadores com um sonoro ‘Time sem vergonha’.
“A gente entende a frustração da torcida. É a mesma da gente. Perder um título em casa é difícil. Tentamos de todas as formas. Teve aquele pênalti e não conseguimos o segundo gol. É um pecado”, disse Juan na saída do gramado, sem tirar a razão dos fãs.
“Eles estão tristes. É um momento que não estão contentes, nós também não. Todos os acontecimentos, antes, durante e depois do jogo, entram para a história do flamengo como o pior de todos os tempos. A gente tem que saber assimilar e que ano que vem seja melhor para todos os torcedores e para a torcida que precisa refletir sobre suas atitudes. Os argentinos foram mais competentes e ganharam o jogo”, completou Éverton Riveiro, que começou a decisão no banco de reservas.
O ano que era para ser do Flamengo termina com apenas um título E justamente o que a torcida ‘menos queria’, o do Campeonato Carioca. O título mais desejado, por outro lado, acabou sendo a maior decepção. Na Libertadores, o Flamengo não conseguiu sequer passar da fase de grupos, em grupo que tinha San Lorenzo (ARG), Atlético-PR e Universidad Católica (CHI). O terceiro lugar na chave ao menos credenciou o time para disputar a Copa Sul-Americana.
Enquanto isso, o time cambaleava no Campeonato Brasileiro, sem nunca conseguir chegar perto da disputa do título. A chance de ‘salvar’ o ano era nos torneios eliminatórios. Em ambos, porém, a campanha acabou frustrada na decisão. Na Copa do Brasil, derrota para o Cruzeiro nos pênaltis. E agora taça perdida para o Independiente na Sul-Americana.
“O Flamengo teve um investimento muito alto. Conseguiram duas finais de campeonatos grandes e acabou tendo alguns erros cruciais tanto fora como dentro de campo. O time podia ter voltado da Argentina com resultado melhor e não conseguiu. Por isso gera sim uma frustração e brigas sem motivos, porque a luta deve ser em campo e não entre torcedores. Podia ter conseguido esses dois títulos e seria um ano muito bom”, disse Réver. O problema é que nenhum dos troféus veio. O pau comeu feio e a decepção foi frustrante e virou caso de polícia. E a sensação é mesmo muito amarga, realmente uma vergonha!
Fonte: Sporte TV / Redação JC
DEIXE SEU COMENTÁRIO | Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião deste site.