Alguém devia ter caluniado Luiz Carlos Cancellier de Olivo, porque foi preso uma manhã, sem que houvesse feito alguma coisa de mal. O início de ‘O Processo’ é lembrado pelo desembargador Lédio Andrade, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao comentar, ainda cheio de dor, o suicídio do reitor da Universidade Federal da Santa Catarina (UFSC), que completou dois meses neste sábado, dia 2 de dezembro. “Nem Kafka pensou que uma sucessão de arbitrariedades pudesse levar a algo tão brutal”, disse Andrade, também professor da UFSC.
Cancellier, o Cau, seu amigo desde os 9 anos, foi preso pela Polícia Federal, na chamada Operação Ouvidos Moucos, na manhã de 14 de setembro. Estava sendo investigado, sem saber, pela delegada Érika Mialik Marena, ex-coordenadora da Operação Lava Jato, em Curitiba, e depois, da Ouvidos Moucos, em Florianópolis.
A suspeita sobre o reitor de 59 anos, de nenhum antecedente criminal, era a suposta tentativa de obstruir uma investigação sobre desvios no programa de educação a distância – feita, principalmente, por um declarado desafeto do reitor, o corregedor-geral da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, integrante da Advocacia-Geral da União em Santa Catarina. No depoimento que prestou no inquérito da PF, o próprio Prado contou sua contrariedade por Cancellier, em medida administrativa de redução de custos, ter cortado uma gratificação de R$ 1 mil.
A delegada nem sequer cogitou que poderia haver possibilidade de retaliação pessoal. Segundo a própria PF, 115 policiais foram mobilizados para prender Cancellier e outros seis professores da UFSC. No dia da prisão, a PF noticiou, em seu site, que a Ouvidos Moucos combatia “desvio de mais de R$ 80 milhões”. Esse valor, como depois explicou a delegada Érika, era o total de repasses do Ministério da Educação para o programa de ensino a distância ao longo de dez anos, 2005 a 2015, quando Cancellier não era o reitor (só o foi a partir de maio de 2016).
No mesmo dia 14 de setembro, depois de depor na PF, o reitor, foi levado, como se condenado, para a penitenciária de Florianópolis. Teve os pés acorrentados, as mãos algemadas, nu, submetido à revista íntima, vestiu o uniforme de presidiário e ficou em uma cela na ala de segurança máxima.
Com problemas cardíacos, passou mal, e foi examinado e medicado por seu cardiologista. Trinta horas depois, a pedido do advogado Hélio Rubens Brasil, uma juíza federal relaxou a prisão.
Dezoito dias depois, 2 de outubro do corrente ano, Cancellier se matou, com 59 anos, atirando-se do sétimo andar de um shopping de Florianópolis. “A minha morte foi decretada quando fui banido da Universidade!!!”, escreveu Cancellier em um bilhete que deixou. Cinco dias antes da tragédia, o próprio reitor descreveu, em O Globo, a revolta que o dominava: “A humilhação e o vexame a que fomos submetidos há uma semana – eu e outros colegas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – não tem precedentes na história da instituição”, escreveu.
Andrade, que lembrou Kafka, o viu pela última vez, em 13 de agosto – bem antes da prisão, foram a Blumenau, no interior de Santa Catarina, participar de uma partida simultânea contra a campeã brasileira juvenil Gabriella Feller. Dos doze adversários, a enxadrista derrotou onze, até mesmo o reitor. O único a vencer foi Andrade. “Ele ainda me criticou por isso”, contou. Depois da prisão, recebeu-o em casa, para um jantar de levantamento de ânimo entre poucos amigos. Cau estava sob efeito de remédios psiquiátricos. O pouco que falou foi para narrar o que passou na penitenciária. “Ele foi vítima de um sistema que condena sem defesa, contrariando à Constituição”, disse o desembargador do TJ-SC.
Notícia-crime
Catarinense de Tubarão, filho de operário e costureira, Cancellier foi liderança do movimento estudantil contra a ditadura, ligado ao chamado Partidão, o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Depois foi jornalista. Assessorou o senador Nelson Wedekin, em Brasília, durante a Constituinte de 1987/1988. Nos anos 1990, de volta a Florianópolis, concluiu o curso de Direito e seguiu a carreira acadêmica.
Deixou três parentes diretos: o matemático Acioli Antônio, irmão mais velho; o jornalista Júlio César, irmão mais novo, e o filho Mikhail, doutor em Direito, como o pai, e também professor da UFSC.
Em 31 de outubro, Acioli Antônio e o advogado Hélio Rubens Brasil estiveram com o ministro da Justiça e Segurança Pública, Torquato Jardim, a quem entregaram uma petição de seis páginas pedindo a instauração de “procedimento administrativo para apurar a responsabilidade da delegada Érika Mialik Marena pelos abusos e excessos cometidos na denominada Operação Ouvidos Moucos”.
A assessoria de imprensa do ministério informou ao jornal ‘O Estado de S. Paulo’ que a petição foi processada e tramita na forma de processo administrativo, atualmente na Polícia Federal. Na PF, segundo o Ministério da Justiça, a corregedoria abriu procedimento para verificar a notícia-crime descrita na petição da família. O procedimento está sendo analisado pelo Núcleo de Polícia Judiciária. Ao fim da análise, que está em fase de execução, haverá um parecer sobre a existência do crime. A depender do que diga o parecer, abre-se um inquérito sobre a delegada.
Prisão
A prisão temporária do reitor e de seus colegas da UFSC foi pedida pela delegada Érika à juíza federal Juliana Cassol. Ouvido o Ministério Público Federal (MPF) – onde o procurador da República André Bertuol deu parecer favorável – Juliana autorizou, concordando com o argumento de risco à investigação, entre outros. A prisão foi relaxada pela juíza federal Marjorie Freiberguer, durante o período em que Juliana estava de licença médica. Quando retornou, ela criticou o relaxamento. O jornal ‘O Estado de S. Paulo’ tentou falar com a delegada Érika, com as duas juízas e com o procurador Bertuol. Nenhum quis falar.
“Queremos urgência na apuração das responsabilidades de todos os responsáveis pela prisão que resultou na morte do Cau, incluindo a decisiva pressão do algoz (o corregedor Hickel do Prado)”, diz o outro irmão, Júlio Cesar Olivo. Prado é citado no documento entregue ao ministro da Justiça como “um subordinado e oposicionista político”.
Na semana imediatamente anterior à prisão, Cancellier esteve em Portugal, participando de um seminário. Ao voltar, em 13 de setembro, autorizou seu chefe de gabinete, Aureo Moraes, a abrir um processo administrativo-disciplinar contra o corregedor, pedido pelo professor Gerson Rizzatti. Prado ainda tentou uma liminar contra a portaria que abria o processo, e o afastava até a conclusão, mas o juiz federal Osny Cardoso Filho não a concedeu. Cancellier foi preso no dia seguinte.
No dia 23 de outubro, a vice-reitora Alacoque Erdmann, que o sucedeu, recebeu a visita do superintendente regional da CGU, Orlando Vieira de Castro, e do procurador da República André Bertuol. “Eles pressionaram a reitora, e ela revogou a portaria”, disse Moraes ao jornal ‘O Estado de S. Paulo’. Dias depois a vice-reitora pediu para afastar-se do cargo – e Prado pediu licença médica. Castro, Bertuol e a vice-reitora não quiseram falar. Depois da morte do reitor, o site “Jornalistas Livres” levantou uma série de procedimentos judiciais contra Prado, incluindo uma sentença por calúnia, violências contra sua ex-mulher e contra moradores de um prédio em que era o síndico.
Novo reitor
Assumiu a reitoria da UFSC o professor-doutor Ubaldo Cesar Baltazar, amigo antigo de Cancellier, e, como ele, ex-diretor do Centro de Ciências Jurídicas. Baltazar despacha na mesma cadeira onde atuava Cau. “Tive uma boa conversinha com ele antes de sentar aqui”, disse ao jornal ‘O Estado de S. Paulo’, revelando sua forte formação espírita. “A prisão foi arbitrária e desnecessária”, disse o reitor. “Queremos a apuração das responsabilidades.”
Na terça-feira passada, o juiz Marcelo Volpato de Souza mandou arquivar o inquérito que apurou a morte do reitor, concluindo ter sido mesmo suicídio. No despacho, o juiz cita trechos do parecer do promotor Andrey Cunha Amorim, da 37.ª Promotoria de Justiça da Capital. Diz Amorim: “(…) dias antes do seu suicídio, a vítima foi presa provisoriamente, permaneceu encarcerada por um ou dois dias e teve sua prisão revogada judicialmente. Do ponto de vista psíquico, tais fatos, evidentemente, podem ter contribuído para o agravamento do quadro de depressão do ofendido, levando-o ao ato extremo de ceifar a sua própria vida”.
Finalizando
Um bilhete foi encontrado no bolso da calça de LUIZ CARLOS CANCELLIER DE OLIVO com os seguintes dizeres: “Minha morte foi decretada no dia do meu afastamento da universidade”.
Em carta publicada no jornal O Globo, o reitor CANCELLIER revela o caráter humilhante da sua prisão e de seus colegas da UFSC:
“A humilhação e o vexame a que fomos submetidos — eu e outros colegas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) — há uma semana não tem precedentes na história da instituição. No mesmo período em que fomos presos, levados ao complexo penitenciário, despidos de nossas vestes e encarcerados, paradoxalmente a universidade que comando desde maio de 2016 foi reconhecida como a sexta melhor instituição federal de ensino superior brasileira; avaliada com vários cursos de excelência em pós-graduação pela Capes e homenageada pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina. Nos últimos dias tivemos nossas vidas devassadas e nossa honra associada a uma “quadrilha”, acusada de desviar R$ 80 milhões. E impedidos, mesmo após libertados, de entrar na universidade…”
RUBENS CASARA, referindo-se ao Estado Pós-democrático, observa que “no momento em que direitos e garantias individuais são afastados com naturalidade por serem percebidos como empecilhos ao livre desenvolvimento do mercado e à eficiência punitiva do Estado, lamenta-se a ausência de debates sobre o agigantamento do Estado Penal. “Lamenta-se a ausência de debates que tratem da amplitude e importância do valor liberdade”.
No Estado democrático de direito fundado, realmente, em bases democráticas – democracia material – deve prevalecer o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa. Repita-se, o status libertatis é a regra. A presunção é de inocência. A prisão cautelar como medida drástica e de exceção somente deveria ser decretada como remédio extremo, como última ratio. Em caso da imperiosa necessidade de decretação de alguma medida cautelar, que seja feita a opção pela menos gravosa e menos aflitiva ao acusado. Por fim, que seja sempre evitada à prisão e que a liberdade sempre prevaleça.
Na verdade, nua e crua, o reitor LUIZ CARLOS CANCELLIER DE OLIVO não se suicidou, foi “suicidado”, foi “suicidado” sem direito a defesa e com emprego de meio cruel, por todos aqueles que representam e agem em nome do Estado Penal, que massacram diuturnamente a dignidade da pessoa, do ser humano, postulado do Estado democrático de direito.
Fonte: ‘O Estado de S. Paulo’ / O Globo / Finalizando
Leonardo Yarochewski: Advogado criminalista e professor de Direito Penal da PUC-Minas. Membro do CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária)
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